quinta-feira, 29 de dezembro de 2011


"vamos tornar as coisas mais aritméticas". ela tem essa mania de colar recados indecifráveis na geladeira e arrastar os chinelos enquanto anda. de largar o fio dental mentolado em cima da torneira. "algo não me caiu bem". ela espera que eu diga alguma coisa que ela não vai ouvir. então ela alimenta os peixes e mastiga as beiradas da unha até sangrarem. me pede um band-aid, joga a embalagem vazia pela janela e observa o que ela chama de a cura suicida. os classificados que ela rasga destacam o leilão de uma cobertura duplex com vista para um lago que não existe mais.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011


se eu digo harakiri
e você entende daikiri
um de nós vai acabar com um guarda-chuva de crepom enfiado na barriga

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011


e embora minha lanterna tenha um alcance ridículo eu me meto em becos atrás de você. eu chego até a jogar uma pedra no chão e brincar de amarelinha como se transitar entre o céu e o inferno fosse mera questão do acaso ou da minha falta de pontaria. eu me meto a ser a última girl scout que exagerou na quantidade de alvejante e fingiu surpresa ao retirar da lavadora um bocado de peças manchadas. você consegue perceber que há uma espécie de subversão nisso? quase tão dolorida quanto o último toque que você deu na minha mão antes da luz da minha lanterna de alcance ridículo se esvair de vez.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011


adotei um vira-lata
dei o nome de osso
no sétimo dia ele achou que era deus
mas não descansou
ao contrário, arrancou
um pedaço do meu tornozelo
e agora você diz
que eu só dou mancada

sábado, 10 de dezembro de 2011

é como uma assustadora cantiga de roda que te alerta para não pisar em poças que escondem fios desencapados. ou a merda de um musical da broadway que está em cartaz há mais de quarenta anos só porque você ainda não assistiu. tenho alimentado os ratos com teias de aranhas ruminadas apreendidas num depósito clandestino e me divirto diante da impossibilidade das múmias cortarem os próprios pulsos. meus joelhos não suportam outra oração mas eu ainda posso te salvar jogando uma rede de pesca. é só você não se afastar muito. os malditos remos me fazem navegar em círculos e eu acabo ficando enjoada.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

A RAIVA - Mário Bortolotto

a raiva é implacável. me arrancou da cama e me jogou contra a parede. me fez rolar escada abaixo e me atirou rosas, granadas e carrinhos de bebê. a raiva me quer na rua, por isso me fez ouvir torch songs nos bares prediletos e tocou fogo na minha casa. a raiva esticou minha perna e me fez pressionar o acelerador. me fez derrubar semáforos e me jogou sobre um leito de hospital. a raiva me internou e ocultou meus diagnósticos. a raiva matou meu melhor amigo numa igreja às 6 da tarde num sábado de sol, a raiva tava de collant preto com uma Uzi numa mão e arroz na outra. a raiva é irônica e destrincha perus na noite de natal. a raiva redigiu meu epitáfio com uma frase de efeito. a raiva é cuidadosa. por isso me jogou na cadeia, me espancou e me fez confessar a cor das cortinas da casa dela. a raiva sabe como fazer as coisas. me serviu ópio e haxixe e disse que estava tudo bem. a raiva toca notas dissonantes e anda sempre de preto. a raiva me chamou de Bob Sands e depois gargalhou sadicamente. assim ela é. a raiva me fez dormir em pensões escrotas. a raiva respira pela boca e anda pelo corredor enquanto os anjos dormem. a raiva sabe o momento certo de te apertar o pescoço. a raiva é paciente e sincera. a raiva ri da minha cara. a raiva faz negócios com mercadores europeus. a raiva importa armas químicas e anda com cachorros felpudos nas mesmas calçadas que você. a raiva jogou boliche com meu amigo Charles, ela disse a ele que a diet coke é o sêmem do mal. a raiva é histérica e transforma banalidades em manchetes internacionais. a raiva me bateu com uma Magnum 357 no rosto. a raiva me quer vivo, por enquanto. a raiva decide o teu destino. a raiva escondeu os preservativos. a raiva fez um pacto de sangue com os burocratas das mesas envernizadas. a raiva mistura água com vinho e não quer os meninos nas portas das vernissages. a raiva não tem sexo. a raiva dorme sozinha e lê suplementos dominicais. a raiva perdeu o trem e ficou por aqui. a raiva é um espectro sobre colchoados controlando nossas vidas pelos aparelhos de tv. a raiva anda em sedãs vermelhos e recebe os caras pela porta dos fundos. a raiva me serviu leite e maionese e disse que era pro meu bem. a raiva é cheia de subterfúgios. a raiva me cortou a face com lâmina de barbear. a raiva fez a imagem se formar antes da minha retina. a raiva escreve da direita pra esquerda e de cima pra baixo e fala em cinco idiomas. a raiva dança sons africanos. a raiva vomitou no meu prato e quebrou os joelhos da minha mãe. a raiva tomou uma overdose e não morreu. a raiva é imortal. a raiva confundiu as teclas da minha máquina de escrever. a raiva me fez mendigar um litro de vinho no coração da cidade. a raiva corroeu meu fígado. a raiva fez meus amigos se voltarem contra mim. a raiva se vestiu de púrpura. a raiva é um vírus mortal. a raiva anda de cadeira de rodas. a raiva me abraçou e me beijou na boca. eu acreditei nas suas boas intenções. a raiva me levou pra cama e me entupiu de frisium. a raiva carrega ordens judiciais no bolso do paletó. raiva faz tudo em nome da lei. a raiva é onipotente e onipresente. a raiva sabe onde me escondo. a raiva estuprou minha garota numa banheira e depois a esfaqueou repetidas vezes. a raiva tem olhos vermelhos. a raiva tomou conta de mim. eu estou a caminho. é melhor limpar a área.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011


hemorragia interna ou uma vala grande demais pra passar uma mini-van. ainda vejo desconhecidos pelos arredores e caçambas cheias de embalagens de pizza do domingo. ontem eu me surpreendi com minha empolgação naquele filme do schwarzenegger, mas porra, tinha o robert duvall com todo aquele paternalismo latente clonando uma pá de pessoas só pra não perdê-las. quanto a você, eu te colocaria numa casa de espelhos de um parque de diversões distante e pediria pra orson welles dirigir a cena toda. e faria infinitas cópias piratas pra espalhar pelas vitrines eletrônicas de tóquio. bem ao lado das oscilações do índice nasdaq. eu abriria mão de tudo isso se fosse capaz de te escrever um verso. mas enquanto não sou, baby, joga fora aquela camiseta. vamos começar de onde nunca paramos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011


sabe o que é mais engraçado? planetas estão pouco se lixando pra astrologia e casas mal assombradas sentem falta de seus fantasmas. na última vez que fui assaltada o cara falou passa tudo e eu entreguei um dossiê com tudo que eu sabia a seu respeito. agora tô aqui quebrando a cabeça com as peças que me sobraram pra te reconstruir num tabuleiro improvisado. e, na boa, saber que o cavalo só anda em L não adianta nada. e não há programa de computador que simule de maneira eficaz uma partida de GO. essa minha escassez de ferramentas pra te desvendar (de novo) é que me mata. daí eu fico aqui cutucando unhas encravadas com alicates não esterilizados e cronometrando o tempo exato de coagulação. tão cedo não vou poder calçar meus sapatos e ir atrás daquele cara pra te tomar de volta.